20/01/2007

Carta aos indecisos


Caro indeciso,


Creio que não nos conhecemos e talvez nunca nos tenhamos cruzado, mesmo assim decidi escrever-lhe a propósito do próximo referendo sobre a despenalização do aborto.

Começo então por lhe agradecer se tiver uma opinião bem formada e intencionada, é sempre muito agradável encontrar pessoas que reflectem com serenidade no assunto. Este assunto deve ser encarado com calma, embora seja impossível por vezes, pelo menos para mim, controlar todos os ânimos. Envolve aquilo que é mais profundo em nós: a nossa condição de humanos, os nossos sentimentos e o nosso sentido de justiça. A nossa forma de pensar é muitas vezes toldada, concordo consigo, por radicais em campanha, quer pelo Sim, quer pelo Não. Do lado do Não, defendem com todo o fervor a questão do momento em que começa a vida humana, a pessoa humana ou o ser humano, ou abordam a questão de uma perspectiva religiosa ou com a detenção de uma moralidade suprema sobre quem pratica um aborto. Do lado do Sim, defendem a total liberalização do aborto, quase como se fosse mais um banal método contraceptivo, ou então levam ao extremo a propaganda política daquilo que temos mais à esquerda no país. Em ambos os casos, não se dispõem ouvir as outras pessoas, querem antes convencê-las a todo o custo que eles estão certos e os outros não. Como se perdessem alguma da razão que pensam ter por ouvirem os outros. Urge um debate sereno (mas não morno) de ideias e uma busca de consensos.

Começo por discordar que nenhuma lei é inteiramente justa. Apenas não o será se tentarmos nela integrar todos os conceitos individuais de justiça, mas neste caso penso que todos percebemos bem o que se pode dizer que está certo e é desejável, e o que está errado e deve ser corrigido. Portanto é muito importante começar por perceber bem qual é a lei actual e qual é a alteração que vai a referendo. A maior parte das pessoas desconhece que, por exemplo, a lei actual é exactamente igual à lei em Espanha, e que a alteração proposta é mais ampla do que qualquer lei em vigor na Europa.

Eu penso que a maioria das pessoas que vão votar Sim o fará por dois motivos: a falta de informação e uma enorme vontade de tornar o mundo melhor. Parece contraditório, mas não é. A falta de informação daqueles que votariam Não se vissem que principalmente desde 1998 muito tem sido feito pela ajuda às mulheres que se deparam com gravidezes inesperadas e indesejadas. Como não vêem, olham para quem defende o Não como alguém que defende moralismos impuros e na prática não faz nada pelo apoio àqueles que tanto sabemos necessitarem. Olham com natural desconfiança, desacreditam e votam Sim com tristeza. Muito provavelmente, caso o leitor seja um jovem como eu, será o caso dos seus pais. Outros têm uma enorme vontade de tornar o mundo melhor, não suportam que mulheres sejam presas e humilhadas para além daquilo que já sofrem pela situação em si mesma, e remetem para cada um a liberdade de fazer a sua escolha. Defendem a integração de toda a mulher que realize um aborto numa estrutura de planeamento familiar. Fazem-no com uma genuína e admirável preocupação por todas as pessoas que passam por uma situação complicada que as leve a fazer um aborto. No fundo, creio que este é o primeiro impulso de todos, mesmo de um votante no Não. É um voto nobre, que demonstra que há muitas pessoas preocupadas e que querem ter uma voz e um papel activo na mudança das coisas.

Penso ainda que a maioria das pessoas que vai votar Não o faz também por dois motivos. O primeiro é a defesa suprema do valor da vida que associam ao feto ou embrião, e portanto não o fazem por um motivo que possa ser condenável. Apenas não é a minha posição. O segundo é encararem o aborto como um sintoma de uma doença profunda da sociedade: a precariedade, a falta de informação das pessoas, de planeamento familiar e de educação sexual e, sendo isto que os distingue dos votantes no Sim, quererem seguir esse caminho para a solução do problema. Querem a aplicação da lei actual como uma solução que evite a liberalização do aborto. Acreditam que o problema se deve resolver de raíz, apoiando cada indíviduo da sociedade desde muito cedo na sua vida, ao longo da sua educação, para evitar que alguém tenha que fazer um aborto, pois antes dele surge uma gravidez indesejada, e que é aí que se deve atacar. No fundo, não se batem pela eliminação do sintoma, mas da doença, o que não deixa de ser, na minha opinião, fruto de uma honesta vontade de resolver o problema, consagrando na lei os casos de violação, de malformação grave do feto, de perigo de saúde ou vida para a mulher grávida, de perigo de sequela psicológica para a mulher grávida, lutando também contra todos eles em simultâneo. Pretendem a integração de todos no planeamento familiar antes da primeira gravidez, sem esperar por um primeiro aborto.

Nenhuma destas pessoas está mais certa ou perto de ter razão do que outra. Cada uma defende um caminho possível, acreditando que é o mais correcto. Isto é o que torna o debate tão complicado, mesmo depois de excluídas as posições mais extremistas.

Muitas pessoas defendem que legalizar é fazer com que algo clandestino passe a ser controlado e a ter regras, e também que despenalizar é considerar desnecessário o cumprimento de uma pena. Permitam-me que comente.
Quanto à primeira afirmação, legalizar é adquirir para lei e código geral de conduta algo que é em si mesmo benéfico para a sociedade, ou, não o sendo, não a prejudica tanto como a situação contrária. Como concordamos todos que o aborto deve ser combatido e evitado, resta-nos que deva ser legal por evitar uma situação pior e que não pode ser eliminada. A questão está então em aferir se o aborto clandestino pode e deve ou não ser eliminado sem ser legalizado o aborto em si mesmo. Uns respondem Sim, outros respondem Não.
Quanto à segunda afirmação, não é tão linear assim. Devemos considerar crime algo que, no geral, é um mau princípio e prejudica a sociedade, o que não implica necessariamente que todas as pessoas que roubem sejam à luz da lei punidas por isso. No entanto, o facto de ser crime faz com que o incitamento ao roubo e o roubo por ganância sejam punidos, porque o roubo em si mesmo é errado, deve ser combatido e extinto da sociedade. Por exemplo, se uma mãe é apanhada a roubar pão para alimentar um filho, não cumpre pena, devido às atenuantes, que dependem de caso para caso. Logicamente, apesar de essa mãe não cumprir pena, uma outra que roube um carro para assaltar um banco para enriquecer, cumpre (e muito bem) pena de prisão. Não é por acaso que as mulheres portuguesas que realizam um aborto até às 10 semanas, actualmente, não são presas nem cumprem um minuto de prisão. Não é por caridade dos juízes. É precisamente pelo facto de a lei considerar estes casos, e não os punir. Não é por não ser cumprida. A lei actualmente é cumprida, e inclui (e muito bem) penas pesadas para parteiras e médicos que façam uso do sofrimento destas pessoas para enriquecer, e para todos aqueles que incitem ao aborto, principalmente quando efectuado com vários meses de gravidez.
Despenalizar é, portanto, considerar correcto o aborto, no sentido que deva ser feito. Se a lei actual se fizer cumprir, nenhuma mulher é presa por fazer um aborto, porque não é um crime punível por lei. Tudo o que é legal e não tem pena deve ser correcto em si mesmo e incentivado pela sociedade.

Já terão ouvido que este Sim servirá para que quem faz um aborto não tenha que se esconder na clandestinidade. Obviamente que é, mas esse esconder tem mais a ver com a vergonha e o drama que sentem as mulheres que fazem abortos do que com o facto de ser ou não legal. Em Portugal, segundo o Ministério da Saúde, o aborto será gratuito em algumas circunstâncias, mas todas as mulheres que o queiram fazer em situação de confidencialidade e anonimato terão que recorrer a clínicas privadas, às suas custas, o que representa um mínimo de 300 euros. Só se vai pensar nisto depois do dia 11. Está-se a jogar com o drama das pessoas, a vender-se-lhes um direito. A chamada escolha pode ser entendida com um sacudir de responsabilidade do Estado para cada um dos cidadãos, fazendo com que seja cada mulher a resolver uma questão que é dos homens também, mas que acima de tudo resulta da falha de um dever que a sociedade tem: o de combater os problemas de raíz. Muitas pessoas que conhecemos poderiam ter ajudado os filhos a ter filhos, sem terem que alterar drasticamente o seu percurso ou hipotecar a sua evolução de vida. Não o fizeram por não terem sabido que os filhos realizaram abortos. Pode dizer-se que esse desconhecimento se terá devido ao facto de o aborto ser considerado crime. Eu creio que o motivo não foi o facto de ser crime (que independentemente do resultado do referendo continuará a ser, punindo exclusivamente parteiras e médicos, pois a proposta de lei não descriminaliza nada), foi antes o facto ser algo que mexe com o mais íntimo e pessoal de cada um, que não se quer dar a conhecer, mesmo que seja legal. Legalizar não torna as coisas fáceis de lidar para as pessoas. Nenhum aborto é feito de ânimo leve, é algo que deixa marcas físicas, sequelas emocionais e psicológicas, e até danos sociais.

Assusta-me muito que uma filha minha, ou sua, venha a crescer num país e num mundo em que o aborto é considerado uma das primeiras alternativas, que seja visto como um caminho para integrar as pessoas no planeamento familiar, em vez de esta ser encarada como uma prioridade muito antes de acontecer uma gravidez. Além disso, existem alternativas a esta lei que alguns defendem. Não se trata da única hipótese.

Assusta-me muito que se valide qualquer motivo para além dos consagrados actualmente na lei (que podem ir até às 24 semanas) para realizar um aborto. Não ter dinheiro para criar um filho deverá ser motivo para aprovar uma lei que permita o aborto, ou razão para ajudar essas pessoas a eliminar esse motivo? Não desejar ter um filho naquela específica altura da vida deve ser um motivo para sugerir um aborto ou uma ponto de reflexão para evitar que volte a suceder o mesmo com outras pessoas? Eu não defendo um país que ofereça soluções práticas sem se preocupar com as pessoas.

Aquilo que no essencial distingue os dois votos não é senão a crença que a liberalização faça ou não parte da solução. Eu acredito que é possível e preferível apostar na solução mais difícil, a de apoiar as pessoas, de dar um sinal positivo de preocupação e assumir com clareza que a sociedade não pode nem deve ser destituída dos seus deveres para com todos nós, e as gerações futuras.

Creio que o Sim implica, não obstante resolver algumas questões no imediato, um custo muito sério, que é o aumento do número de abortos nas próximas décadas; Portugal não será excepção à regra. Creio que o Não engloba uma profunda mensagem política, civilizacional e cultural, um sinal claro de que nos preocupamos mesmo com aqueles que não conhecemos, mas que de nós precisam, de uma forma muito nobre. Estender a mão para votar Não é estender a mão a quem precisa, é não os abandonar até que tenham problemas e é não pensar neles apenas nessa altura. Nas próximas décadas, o número de abortos pode diminuir, sem que seja liberalizado e sem que se comprometa este processo difícil que envolve quem todos os dias trabalha no terreno por esta causa. Votar Não é difícil, mas reflecte o que de melhor há em cada um de nós, essa consciência profunda que um mundo melhor pode ser construído sem ceder à tentação prática e imediata.

Acreditar pelos melhores motivos ou desacreditar pelos melhores motivos?

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