09/02/2007

Aborto e o machismo (ou "A barriga é minha, eu decido")

É dito a todos aqueles que se incomodam com a questão do aborto se tornar, em caso de vitória do Sim, numa opção exclusiva e solitária da mulher, algo como “A barriga é minha, eu decido, não és tu que vais parir”. Se se insiste um pouco mesmo em argumentação serena, surge um “Os homens nem deveriam votar”, por vezes acompanhado de um “muito menos os que pensam como tu”. Transmite-se uma ideia de egoísmo inerente ao Não, alicerçada no machismo mais puro do homem que ouse incomodar-se com esta questão, oferecendo-se machismo como sinónimo de Não no referendo.
Numa sociedade machista dir-se-á que a mulher deve acordar de noite quando o filho chora, deve levá-lo ao médico quando este está doente, mudar-lhe a fralda, dar-lhe as refeições, ir levar os filhos à escola de manhã, buscá-los ao fim do dia, comprar-lhes a roupa que precisam e tratar das festas de aniversário. Dir-se-á que não são tarefas de um pai. Dir-se-á que são obrigações de mãe zelosa.

Na nossa sociedade diz-se isto e acrescenta-se: a barriga é da mulher portanto a responsabilidade da gravidez é dela. Que tivesse ela tomado a pílula e tido cuidado, que tivesse ela guardado um preservativo na carteira, que decida ela se quer ou não ter o filho (como se se tratasse de um verdadeiro e simples “quero” ou “não quero”), e que trate de o carregar nove meses ou de ir onde tiver que ir para abortar. Diz-se que o pai não tem voto... na matéria.

A fasquia do machismo sobe ainda mais quando remetemos a pergunta de um referendo para algo que engloba “por opção da mulher”. Quando o parceiro é um indivíduo digno e preocupado, de nada lhe serve, porque a lei que o Sim pretende é clara em ignorá-lo. Quando o parceiro é um indivíduo indigno e despreocupado com a companheira, nem tem que chegar a saber que esta realizou um aborto, pode seguir a sua vida para outras paragens.
Lutou-se muito em Portugal para terminar com a figura do pai incógnito, mesmo quando se dizia que tal não seria possível, dada a impossibilidade de obrigar um homem a assumir um filho que não deseja. Hoje a realidade é clara, e mesmo que o pai não queira, é obrigado a realizar testes de paternidade e a assumir uma criança quando estes mostram é sua filha. Foi um passo gigantesco pela justiça e humanismo no nosso país. Este Sim no referendo pode significar um passo ainda mais gigantesco para a cultura do machismo e da desresponsabilização do homem perante os seus filhos e a sua companheira. Fica a mulher sozinha na sua dolorosa “opção”, sendo-lhe oferecido o aborto como primeira alternativa. Logicamente, incentiva-se que interrompa a gravidez, sozinha e o menos apoiada possível.
Não se trata então da falsa questão de o homem não pode obrigar a mulher a ter um filho que não deseja, imagine-se o trauma que seria ou do não se vai amarrar a mulher a uma cama 9 meses só porque o homem quer ser pai. Ninguém defende isso, apesar de ser um argumento fácil de apelo ao Sim dizer que o Não está a defender isso.
Trata-se de dividir a responsabilidade de uma gravidez não desejada pelos dois, em vez de a deixar inteiramente nos ombros e na barriga da mulher. Permitir que a mulher realize um aborto sem informar o pai é descartar o papel deste na concepção da criança, privá-lo de um direito básico de informação, isolar mais ainda a mulher na dor da decisão solitária, num país que lhe facilita um aborto como solução aos problemas.

Nenhuma mulher desejaria não saber se o homem pudesse engravidar e realizar um aborto sem lho comunicar. Quando a mulher opta por ter o filho, o pai da criança é obrigado (e muito bem) a assumir a paternidade. Quando opta por abortar o homem não é obrigado a assumir as suas responsabilidades, não é integrado no planeamento familiar e permanece na sua ignorância. Resulta isto numa sociedade em que a mulher resolve o problema dos homens que livremente engravidam mulheres. Um adolescente pode engravidar uma namorada aos 14 anos, outra aos 16 e outra aos 21, lavando as suas mãos, deixando-a desamparada e sozinha no caminho para a clínica de abortos legais.
Afinal de que lado está o machismo? Sempre que se ouvir Não ao aborto a pedido da mulher, por opção exclusiva desta, é disto que se está a falar, e é isto, e não outra coisa, que se defende. Está-se a falar precisamente da luta contra o machismo.
Como homem, não tenho apenas receio de não ser ouvido, tenho medo que abortos sejam feitos por não termos que ser ouvidos, por não termos a oportunidade de pensar no assunto, por sermos desresponsabilizados, por se cultivar a nossa ausência no papel de apoiar a mulher, de não a deixar sozinha.

É comum ouvir-se do Sim: Isso é tudo muito bonito, mas muitos homens não querem saber disso para nada nem apoiam as mulheres mesmo que saibam. Nesse caso, além desses que hoje ignoram o problema, não é desejável uma lei segundo a qual todos os outros ficarão alheios ao problema, sendo-lhes apenas atribuida responsabilidade pelos filhos após o momento em que nascem. Mãe desde que engravida, pai nove meses depois.
Todos os que desejam uma solução fácil e descomprometida para mim e para todos os homens devem votar Sim. Todos os que desejam assumir que este é um problema da sociedade, de homens e mulheres, e apostar na educação dos homens também, para prevenir gravidezes indesejadas e, por consequência, abortos, devem votar Não.

Felizmente, os homens querem votar e estão empenhados; queremos que nos exijam responsabilidade pelo que fazemos.

4 comentários:

Anónimo disse...

Escrevi, acerca do mesmo assunto, numa perspectiva do feminino em relação ao masculino (não do feminismo):

"Cogito" III – O homem, no masculino, a paternidade e o aborto

O século XX foi um século ímpar na História, pelas suas conquistas. Se há uma de que o Mundo se pode orgulhar é a conquista das mulheres pelos direitos que lhes foram usurpados durante séculos. A primeira grande conquista, como o exercício da cidadania, foi, sem sombra de dúvidas, o do sufrágio feminino.

As várias desigualdades entre homens e mulheres fizeram com que movimentos, intitulados de feministas, lutassem e continuem a lutar pela afirmação da mulher em muitos e diferentes campos, tais como, a política, a cultura, a sexualidade e a religião.

A discussão em torno da interrupção voluntária da gravidez (IVG), vulgo aborto, nos últimos meses, permitiu-me aprofundar algumas reflexões sobre as questões de género, em que, naturalmente, se insere o "feminino" e o "masculino", muito embora os estudos se pronunciem maioritariamente sobre o primeiro.

Ainda que as opiniões possam diferir da minha, sou da opinião de que, na questão do próximo referendo, uma das partes é, de facto, discriminada e lacunar: o homem.

Já anteriormente tinha pensado que as desigualdades entre sexos foram e continuam ainda a ser de tal modo alarmantes que a luta pela causa das mulheres atinge extremos desequilibrados e radicais, numa luta do "contra o machismo". Julguei, contudo, que este meu pensamento era estúpido e que jamais uma mulher argumentaria a favor da IVG pelo "feminismo" ou pelo "contra o machismo". Constatei que isso é, de facto, verdade, não só no blogue "Colectivo Feminista", como numa conversa com uma amiga, que me dizia que o facto de ser a favor da IVG era porque, na sua família, sempre tinha visto as mulheres fazerem tudo (mulher votada à cozinha, subentenda-se), enquanto os homens não faziam nada.

Comungaria eu da mesma opinião que a minha amiga se, na minha família, a mulher tivesse sido votada à cozinha ou se a minha educação tivesse sido diferente? Não sei. O que sei é que um argumento destes me deixa chocada, pois caminhamos, não do 8 para o 80, mas do 8 para o 800. A imagem que apresento no blogue intitulada "Teremos esta oportunidade?" foi suscitada por essa conversa.

Todos estes acontecimentos permitem-me pronunciar acerca do papel do homem, do masculino, ao longo da História, incluindo o papel de machista a que continua a ser votado.


As políticas actuais, sem particularizar, não têm de ser um ataque ao homem, o género masculino, nem de ser uma vingança de séculos.

Se a visão do homem está errada, há que alterá-la, pelo Humanismo, pela Ética, não pela oposição. Se quisermos ter um mundo digno para todos, temos, realmente, de lutar por um mundo que seja justo para todos, sem esquecer que homens e mulheres são diferentes, cada um com as suas especificidades próprias.
Ao homem-pai deve ser concedida a mesma dignidade e até direitos que à mulher-mãe. Contudo, os machismos continuam a proliferar quando se fala desta questão.

Onde está a igualdade de género, sem renunciar às especificidades? Considero que a especificidade do homem é também a de ser pai – tem todo o direito a sê-lo. A questão do referendo não o contempla sequer. Um feto de 10 semanas, de menos ou de mais, é 50% da mulher e 50% do homem. Ele tem o direito de ser pai, enfim, de ser um homem-grávido.

Do mesmo modo que defendo que uma mãe possa ter um tempo para estar em casa a cuidar dos filhos (muito mais alargado do que aquele que o Estado português lhe confere), ou a trabalhar sem ser a tempo inteiro para ter tempo para eles, defendo-o para o pai. Também quero, ou melhor, exijo essa igualdade para os homens. É-se mãe de uma forma e o pai não pode sê-lo? Que menos privilégios tem o homem do que a mulher que não possa estar em casa com os filhos e ter o direito a ser pai? Que menos privilégios tem o homem que não lhe seja dada a oportunidade de ser pai, de ver crescer e criar os seus próprios filhos? E o que dizer da tutela dos filhos no caso de divórcio?

É esta ainda uma certa concepção do homem, desde a antiguidade: aquele que deve trabalhar fora de casa para sustentar a família, o procriador, o cobridor, o macho sem sensibilidade e sem carinho.

O feminismo não pode ser o antagonismo do machismo e adoptar as mesmas proporções que ele adoptou durante séculos e que moldava tudo e todos. É urgente uma nova visão, de direitos e de deveres, de princípios verdadeiramente humanos.

O futuro nos dirá onde chegaremos. Antes disso, saibamos para onde queremos ir.

Liliana Verde

Anónimo disse...

Obrigado, Liliana.
Iria votar não, pela criança.
Para mim um feto é um ser vivo.
Agora ao ler o seu comentário, vou votar não, porque sou pai de duas filhas e se minha mulher quiser fazer um aborto tenho direito a não ser machista, mas sim homem e dizer que não para tratar da criança.
Nem 8 nem 800. Muito bem.
Nem machismos nem feminismos.
Não percebo muito do assunto, mas agradeço o comentário bastante que esclarece bastante.

Anónimo disse...

Vejo que ainda existem pessoas que têm mais do que dois dedos de testa, isto é, que se libertaram do ser primata que habita o corpo humano desde a sua origem.
Muitos parabéns ao Pedro e muitos parabéns à Liliana que se dedicam a uma questão de um modo nada clubista mas, de uma maneira bastante completa e cuidada. Sim, quando vejo os noticiários parece que estou a assistir a um campeonato e não a um referendo que está a por em causa valores de uma sociedade.
Vejo, tal como voz que a questão elaborada e que aparecerá no boletim de voto, que é a maneira mais barata de “chutar para canto” este assunto.
Afinal por andam esses homens – note-se o “h” minúsculo – que não têm coragem, e não digo outra coisa porque há senhoras que podem ler este texto, para assumir que mandaram uma “queca”. Onde a homossexualidade já chegou! Afinal não são machos nenhuns. São é uma cambada de cobardolas que fogem com o rabinho entre as pernas e que só admitem a paternidade quando se fala de levarem na cara com o resultado das análises do teste de ADN.
Mas tenho que confessar o meu apreço pela questão que sairá no boletim de voto. Gosto mesmo muito desta questão. Vejamos porquê?
Saúdo as primeiras grandes Mulheres a dar os primeiros passos para as fábricas de modo a mostrarem que eram tão capazes como os homens de realizar trabalhos pesados (e também intelectuais) e ainda, lutarem por uma independência caseira que estava a ser sufocada por um machismo rude e ditatorial. Mas, será que o verdadeiro objectivo dessas damas seria o de esmagar o sexo oposto? Ou seria talvez o de procurar um ambiente mais confortável no seu lar, e dar uma vida melhor a elas mesmas e à sua descendência? Esta questão com que iremos ser confrontados no dia da vergonha – lá quando se derem ao trabalho de irem votar, isto só para aqueles que podem, porque muitos dos nossos compatriotas que estão no estrangeiro estão impedidos de votar devido ao brilhante sistema burocrático de voto que os nossos representantes tanto se devem dedicar a simplificar – vai no sentido único de se acabar com a igualdade que tanto se debate por aí. Tenta-se com esta pergunta omitir cinquenta por cento da decisão final.

Quanto ao acto do voto, mostro-me divido entre o Não e o Branco, ou mesmo ainda, entre o Nulo (quer queiram quer não o voto nulo é também uma maneira de mostrarmos a nossa indignação com aquilo que se está a passar).

Por último deixo no ar uma questão de relativismo Einsteniano. Aconselho os menos sensíveis a parar a sua leitura por aqui e irem fazer outra coisa qualquer, porque o que vai ser escrito asseguir não é para meninos de coro.

O tempo. Deixemos passar apenas mais alguns meses. Deixemos que a criança nasça. Depois do parto passemos então a seringa com poção letal à mãe e também ao pai, para que os dois num acto em conjunto terminem com aquilo que começaram também em conjunto numa relação de carinho, amor e paixão. Deixemo-los matar o próprio filho.

Macabro? Também acho que sim.
E se assim fosse? Será que a coragem, ou a covardia, levariam para a mesma posição de alguns meses atrás? A tal questão da Interrupção Voluntária da Gravidez.
Não são só as posições materiais e as perspectivas relativas. Afinal o tempo também o é!

Interrupção Voluntária da Gravidez – para quem?

Podem-me chamar maluco narcótico que eu não me importo. Aliás até gosto quando comparado com assassino.



João Manuel

findhelp disse...

Caro Pedro, parabéns pelo belíssimo trabalho. Seus escritos são de uma lucidêz impressionante. Por favor, viste o meu blog:


http://aborto-e-dores-da-alma.blogspot.com.br/

Tudo de bom para você.